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ELOGIO A CÉSAR: UMA APOLOGIA DO POPULISMO
ELOGIO A CÉSAR: UMA APOLOGIA DO POPULISMO
Este texto foi originalmente publicado na plataforma Medium em ocasião dos Idos de Março de 2022, em memória a 2066 anos do assassinato de Júlio César, como uma reflexão sobre a condução dos discursos políticos se aprofundando na história do declínio da República Romana. Pouco mais de um ano após a publicação original, o texto foi revisado e aprimorado para nova publicação neste portal

Poucas palavras são tão usadas e ao mesmo tempo pouco entendidas quanto populismo, um dos termos mais repetidos nas discussões políticas por décadas, como um terrível gigante responsável por todas as aflições do cidadão brasileiro, que uma nova geração de bravos políticos liberais e supostamente antissistema — curiosamente com o irrestrito apoio de um decrépito cartel midiático — deve enfrentar, na mais desvairada cruzada quixotista. Segundo alguns, como o Sr. Sérgio Moro, populismo é aquilo que está arruinando a América Latina, é sinônimo de demagogia, como uma mentirosa manipulação das paixões das massas que é fonte de toda a desgraça das repúblicas latino-americanas modernas, bizarramente responsabilizando o povo pela existência das classes políticas oligárquicas desses países, essas que sempre se opuseram duramente a toda manifestação taxada como populista. O problema é que ninguém parece saber definir exatamente, ou se quer tentar questionar, o que é populismo, porquê não importa, afinal esse termo raramente é usado de maneira legitima, como algo mais do que um espantalho para responsabilizar todas as desgraças modernas. A intenção deste texto é justamente levar populismo a sério e investigar as origens do conceito, especificamente da mais antiga manifestação de um fenômeno político que poderíamos taxar como populismo moderno.Populismo, do latim populus, refere-se a um movimento do povo, o que pode explicar porquê levanta tanta animosidade de uma certa classe.

Sob ocasião dos Idos de Março, dia do bárbaro assassinato do estadista romano Gaio Júlio César, me propus a reconsiderar as implicações do termo e buscar compreender o fenômeno populista latino-americano contemporâneo com base nos seus antecedentes no último século da República Romana, período marcado por conflitos sociais entre reformistas populistas e conservadores aristocratas.

Dos Irmãos Gracchi

Roma não foi construída em um dia. Em meados do século II a.C. já havia deixado de ser uma pequena cidade no coração da Itália e se tornado uma potência no Mediterrâneo, mas o sistema político pouco havia mudado desde o fim da monarquia e a fundação da República, mais de 300 anos antes. A aristocracia latifundiária romana concentrava o poder político e mantinha o monopólio quase absoluto das terras produtivas da península, se sustentando à custa da plebe e privando o direito à cidadania da maioria dos habitantes da Itália. É nesse contexto que emergem os Populares, como um grupo interessado em defender a causa dos cidadãos desfavorecidos e não-cidadãos com as reformas conduzidas primeiramente pelo tribunus plebis Tibério Graco em 133 a.C. e posteriormente por seu irmão mais novo, Gaio Graco, uma década depois. Os irmãos Gracchi pertenciam a um ramo plebeu de uma família antiga e nobre de Roma, os Sempronia; eram netos maternos de um grande herói da Segunda Guerra Púnica, Cipião Africano e filhos do proeminente político homônimo a seu primogênito Tibério, que foi tribunus plebis, censor e duas vezes cônsul.

O jovem Tibério ganhou fama por sua bravura na Terceira Guerra Púnica e por sua negociação de paz com os numantinos na Hispania, uma ação controversa que deu a Tibério renome como uma figura militar e com grande capacidade de articulação política, e ao retornar a Roma ele se deparou com multidões de desempregados e indigentes, muitos dos quais eram veteranos, enquanto a classe aristocrática concentrava grandes latifúndios adquiridos à custa da população e do Estado, pela apropriação das terras públicas de Roma, as quais os latifundiários adquiriam as comprando forçadamente enquanto os fazendeiros que trabalhavam nelas serviam no exército em tempos de guerra, ou expulsando eles e suas famílias em tempos de paz, como ato de gratidão pelo seu serviço militar para a glória de Roma. Não é de surpreender que o historiador positivista Edward Spencer Beesly tenha dito que a aristocracia latifundiária romana exibia coletivamente uma crueldade que seria superada apenas pela sociedade escravagista da América colonial. Essas famílias expulsas das suas terras no campo migravam para a cidade, onde se juntavam a uma massa desalojada de pobres urbanos, em sua maioria dependendo dos programas públicos de assistência a população urbana, que dependiam da produção das fazendas então incorporadas aos grandes latifúndios, majoritariamente improdutivos.

Quando eleito tribunus plebis em 133 a.C., Tibério tratou de corrigir essa grave situação de miséria e desigualdade através de uma reforma agrária. Baseando-se numa antiga lei que limitava a quantidade de terra que um único indivíduo poderia ter, propôs a própria Lex Sempronia Agraria, que forçaria latifundiários a ceder algumas de suas terras caso ultrapassassem 125 hectares. Naturalmente houve resistência da aristocracia, que acusou Tibério de ser um agitador e de atacar os princípios da República, enquanto eles eram os violadores da legislação e dos costumes. Não obstante, a lei foi aprovada pelo Concilium Plebis após um conflito com o tribunus rival Marco Otávio, que foi prontamente afastado do cargo pelo Concilium por deslealdade aos princípios do tribunato, causando controversia no Senado. Suas ações tornaram Tibério um inimigo dos aristocratas latifundiários senatoriais que, sob o pretexto de impedir Tibério de declarar-se monarca, o assassinaram antes que ele pudesse concorrer para seu segundo mandato como tribunus. Essa acusação é de extrema importância: a identidade romana era fortemente baseada na natureza republicana do seu governo, a acusação que Tibério Graco tivesse a intenção de atentar contra a base do espírito romano, embora sem base alguma, era forte, o pretexto necessário para o assassinato brutal de um magistrado romano sob a justificativa de preservar a estabilidade e a ordem. Não seria a última vez que essa desculpa seria usada.

Na década seguinte, Gaio Graco, irmão de Tibério, foi eleito ao cargo de tribunus e tratou de retomar as reformas de seu irmão mais velho. Gaio devolveu a função de fiscalização e expropriação de terra para a comissão formada pelo seu irmão; passou legislação que proibia políticos afastados pelo povo de ocupar o mesmo cargo, oficializando o precedente estabelecido pelo Concilium na controversia com Otávio; reformou o sistema judiciário e deu ao povo autoridade de julgar magistrados que exilassem cidadãos romanos sem julgamento; proibiu serviço militar de homens com menos de dezessete anos; diminuiu o tempo de serviço no exército; proveu ao exército roupas e equipamento; fortaleceu a classe dos equites, a aristocracia entre os plebeus, aumentando sua participação nos processos judiciais; e, finalmente, propôs conceder cidadania romana às tribos dos povos latinos, antigos aliados de Roma, e elevar à condição de latinos os demais habitantes da Itália, o que foi rejeitado. Suas ações, especialmente a proposta de democratizar o direito à cidadania, geraram muita animosidade. Privado de um terceiro mandato pelas maquinações de seus oponentes, os demais tribuni planejaram reverter suas reformas, o que levou a uma grande conflito nas ruas da cidade durante o qual Gaio perdeu a vida. 

De Mário e a ditadura de Sula

As décadas seguintes foram marcadas por agitação civil e conflito a facção reformista e seus rivais conservadores, populares optimates — “os melhores”, como eles modestamente se nomeavam. A instabilidade eventualmente levou a Guerra Social, em que grande parte dos grupos de italianos sem cidadania romana, descontentes com o assassinato do tribunus plebis Marco Druso — que propôs a extensão do direito à cidadania a não-romanos —, revoltaram-se contra Roma em 91 a.C. Embora os romanos tenham tido uma vitória militar e derrotado os principais líderes rebeldes, eles foram forçados a ceder as demandas dos revoltosos. Ao mesmo tempo, o rei Mitrídates Europátor do reino do Ponto, começa a primeira de suas guerras contra Roma, durante a qual o general partidário dos optimates Lúcio Cornélio Sula marchou sobre Roma, tomou controle da cidade e sentenciou a morte seu antigo comandante e então líder dos populares Gaio Mário e seus aliados.

Mário era uma figura extremamente importante, tendo sido cônsul até então seis vezes e realizado grandes reformas militares que levaram a criação de um exército profissional permanente que permitiu a sobrevivência de Roma; era conhecido como Terceiro Fundador de Roma em virtude de suas vitórias contra invasores bárbaros; era casado e tinha um filho com uma certa Julia, dos ilustres Iulii Caesares e tia do mais famoso e influente entre esses, sobre o qual falaremos mais logo. Mário escapou para a África com sua família e seus soldados leais, porém eles não passariam muito tempo longe de Roma, pois enquanto Sula estava em campanha na Grécia Mário retornou e lutou junto com seu aliado Cinna contra os apoiadores de Sula. Com os principais partidários de Sula sentenciados à morte, Mário e Cinna foram eleitos cônsules, porém Mário morreria duas semanas após assumir o cargo pela sétima vez. Após a derrota de Mitrídates e a morte de Cinna, Sula enfrentou o que restava de seus inimigos em uma violenta guerra civil e marchou em Roma pela segunda vez, sob oposição do populacho romano.

Com seus oponentes — incluindo o filho de Gaio Mário — mortos, Sula foi apontado dictator pelo Senado, cargo que ele usou para realizar radicais reformas apoiadas na justificativa de “restaurar a República”, dobrando o número de senadores e retirando a maior parte do poder dos tribuni plebis e proibindo qualquer um que ocupasse esse cargo de ocupar quaisquer outros no futuro, privando o povo romano da maior parte de sua capacidade de influenciar a política. Os feitos de Sula, em especial suas marchas sob Roma e sua implacável e brutal perseguição a seus inimigos, teriam um grande impacto nas décadas seguintes. Cícero — um provinciano que ganhou reconhecimento pela primeira vez defendendo Roscio Amerino de uma conspiração orquestrada por um tenente de Sula para roubar sua propriedade, mas que posteriormente tornou-se um dos principais líderes conservadores — diria que o brutal assassinato de cidadãos romanos sem julgamento por ordem de Sula foi um pequeno exagero em uma ditadura geralmente positiva, enquanto o mesmo Cícero chamaria a ideia de relegar mais autoridade ao povo de Roma um ato de despotismo monarquista. Não devemos crer que a denominação de República dava ao Estado Romano, que nesse ponto em sua história era controlado primariamente por aristocratas latifundistas, algum tipo de superioridade moral em relação a outros sistemas contemporâneos, nos quais reis e déspotas governavam sob a vigília e controle de oligarquias que usavam o Estado para o seu interesse, enquanto em Roma essa oligarquia podia trabalhar para o mesmo fim de forma direta. Um jovem sobrinho de Gaio Mário, genro de Cinna wsacerdote de Júpiter, Gaio Júlio César, foi um dos muitos perseguidos por Sula e, embora o dictator tenha sido convencido a perdoá-lo, César optou por entrar para o exército e sair de Roma para sua própria segurança, servindo com distinção na Cicília e na Frígia.

A Ascenção de César

Após a morte de Sula em 78 a.C., César retornou à Roma e alugou uma casa em Suburra, um distrito pobre da cidade — devido a falta de dinheiro em razão do confisco de suas riquezas por Sula — e voltou-se para a prática de advocacia, onde ficou conhecido pela sua oratória, sendo elogiado até pelo oponente político e também advogado, o já mencionado Marco Túlio Cicero. Detalhar todos os eventos da agitada vida de César e destrinchar os pormenores dos acontecimentos da política romana em que ele se envolveu até sua ditadura é uma tarefa que foge ao escopo do presente texto, então nos reservemos apenas ao necessário: sua ascensão e suas medidas.

Em 60 a.C., César foi eleito cônsul junto ao seu oponente conservador Marco Calpúrnio Bíbulo, sob os protestos dos Optimates. No ano seguinte, César forjou uma aliança entre seu mais influente financiador, Marco Crasso — o homem mais rico de Roma — , e Cneu Pompeu — um poderoso líder militar historicamente alinhado com os optimates que havia desempenhado um papel importante na vitória dos romanos na terceira guerra contra Mitrídates IV— , uma associação informal que ficou conhecida como Primeiro Triunvirato, em que os três, os homens mais poderosos de Roma, conseguiam exercer controle quase absoluto sobre a política da República.

Segundo Suetónio em De vitis Caesarum, a primeira ação de César como cônsul foi promulgar uma lei exigindo a publicação por escrito dos procedimentos do Senado e das assembleias populares, uma medida que o historiador Luciano Canfora identifica como influenciada pela tradição democrática grega para aumentar a pressão popular no Senado. César então tratou de trabalhar em uma reforma agrária com apoio do triunvirato, que seria supervisionada por uma comissão de 20 cidadãos, da qual César não faria parte, e seria financiada pelas riquezas que Pompeu havia conquistado no leste em suas campanhas, que seriam usadas para indenizar aqueles que perdessem terras, beneficiando 20000 cidadãos. Pompeu, que há muito tentava convencer o Senado a distribuir terras para seus soldados, os mobilizou para intimidar oposição. Bíbulo tentou impedir que a lei fosse passada, mas foi afastado do Fórum a força por cesaristas e não ousou sair de casa pelo resto de seu mandato, permitindo que o Concilium Plebis aprovasse a reforma e que César exercesse poderes consulares sem oposição pelo resto do ano, que ficou conhecido como “consulado de Júlio e César”. Embora a reforma de César tenha sido menos radical que a dos Gracchi e tenha incluído uma indenização para os latifundiários prejudicados, foi o suficiente para botar um alvo em César, que sofreu uma tentativa de assassinato por um certo Lúcio Vécio, que nomeou algumas lideranças dos optimates como seus mandantes, porém ele seria assassinado antes que as autoridades pudessem questionar mais. Após o fim de seu mandato, seus oponentes tentaram limitar sua influência, mas seus aliados conseguiram fazê-lo governador da Gália Cisalpina, Ilíria e Gália Transalpina por 5 anos, durante os quais César começou sua longa guerra contra os gauleses nas fronteiras ao norte de Roma liderados.

Enquanto César lutava no Norte, o triunvirato se desfazia: Crasso foi morto em batalha contra os partas no leste e Julia, filha de César e esposa de Pompeu, morreu ao dar a luz. César e Pompeu agora não tinham vinculo, e o Senado apontou Pompeu como cônsul em 52 a.C., após um período de instabilidade e brutalidade nas ruas de Roma com o conflito entre gangues de reformistas e conservadores lideradas pelos rivais Clódio e Milo. Plutarco escreveu sobre a gradual deterioração da aliança entre César e Pompeu:

“…os amigos de César exigiram que alguma consideração fosse mostrada também a César, que estava travando tantas disputas em nome da supremacia romana; diziam que ele merecia ou outro consulado, ou o prolongamento de seu comando, para que ninguém mais pudesse suceder seus trabalhos e roubá-lo da glória desses, mas que aquele que os havia realizado pudesse continuar no poder e desfrutar de suas honras sem perturbação. Surgiu um debate sobre essas questões, durante o qual Pompeu, dando a impressão de boa vontade a César, disse que tinha cartas de César nas quais ele expressava o desejo de ter um sucessor e ser dispensado de seu comando; ele [Pompeu] achou certo, porém, que lhe fosse permitido concorrer ao consulado mesmo na sua ausência. A isso se opôs Cato e seus partidários, que urgiam que César rendesse as armas e se tornasse cidadão comum antes que pudesse obter qualquer favor de seus concidadãos; e como Pompeu não contestou, como se aceitasse a derrota, houveram suspeitas sobre seus sentimentos em relação a César. Pompeu também pediu de volta as tropas que emprestara a César, fazendo da guerra contra os partas seu pretexto para fazê-lo. E embora César soubesse as verdadeiras razões para pedir de volta os soldados, ele os mandou para casa com presentes generosos.”

A Ditadura de César e os motivos dos Idos de Março

Após a rendição do rei dos gauleses Vercingetorix, o Senado intimou César a desbandar suas legiões e retornar à Roma. Alguns, como Cicero, sugeriam que ambos César e Pompeu deveriam se desarmar, porém a maioria do Senado se recusou a aceitar esses termos e declarou César um inimigo de Estado. César respondeu cruzando o rio Rubicão, considerado a fronteira entre a Itália e a Gália, com a 13º legião, começando uma brutal guerra civil entre os antigos aliados César e Pompeu. Interessa mais a este texto, no entanto, não a guerra civil e o tempo de César no Egito, mas as medidas tomadas por César após o conflito, quando ele foi feito dictator, uma posição de autoridade reservada para tempos de crise, além de receber os poderes de outros cargos como tribunus censor.

César usou seus poderes, em prática quase absolutos, para conduzir reformas significativas, como a instituição de um programa em que proprietários de terra podiam vender suas propriedades a preços inflacionados ao Estado, dando um bailout para fazendeiros falidos e sem prospectos e fazendo com que o governo tivesse terras públicas suficientes para distribuir aos veteranos da guerra civil e aos mais pobres, além de distribuir lotes a cerca de 80000 pessoas perto e Cartago e Corinto para ajudar na reconstrução e repopulação dessas cidades. César também reformulou a Cura Annonae — o programa de redistribuição de cereais para os cidadãos mais pobres — , que então beneficiava muitos cidadãos ricos não eram qualificados a receber o auxílio e por uma falta de fiscalização, o que limitava o estoque e privava os cidadãos realmente mais pobres de receber acesso ao programa, César tratou de diminuir o número de beneficiados para 150000 dos mais pobres, aumentando a vigilância para impedir que ricos se aproveitassem da medida.

César buscou criar empregos ordernando a construção de obras públicas em Roma e nas colônias destruídas pela guerra civil; passou legislação para fazer com que a cobrança dos cidadãos endividados deveria ser feita apenas em uma taxa proporcional a sua riqueza, e sem juros; perdoou 1 ano de aluguel de inquilinos empobrecidos pela guerra; instituiu punições duras para oficiais provinciais corruptos; estendeu radicalmente o direito a cidadania, notadamente para médicos, tutores, acadêmicos e filhos de escravos, para o desgosto de Cícero; deu aos judeus o direito de praticar sua religião abertamente e os reconheceu como “amigos e aliados do povo romano”, mostrando gratidão pelo seu apoio sob Hírcano II na guerra civil; aumentou os impostos sobre artigos de luxo; ordenou a construção de uma grande biblioteca em Roma inspirada na de Alexandria, a qual ele é até hoje injustamente acusado de destruir; e reformou o calendário romano tradicional ao calendário que usamos, com algumas modificações feitas por ordem do Papa Gregório XIII, até hoje. Quanto a seus inimigos, diferentemente de Sula e para o desapontamento dos mais radicais, César mostrou a virtude de clemência e ofereceu perdão a todos os nobres que lutaram contra ele, incluindo Cícero, Bruto, Cássio e até Cato, que preferiu o suicídio a aceitar a vitória de César; e ainda reergueu estátuas do líder da sua oposição, Pompeu, morto no Egito pelas ordens do faraó Ptolomeu. César não apenas lhes deu clemência, mas também restaurou suas posições no governo e lhes concedeu honras, como sinal de boa-fé e compromisso com a restauração da República. Eles agradeceriam sua clemência com traição e calúnia, dando bom motivo a Maquiavel para sua visão sobre qual a melhor escolha entre amor e temor.

Suas reformas, medidas anticorrupção e concentração de poder o fizeram um inimigo da aristocracia romana, o que levou ao seu assassinato em 15 de março de 44 a.C. nas mãos de autoproclamados “libertadores”, sob o pretexto de “salvar a República” de um suposto “aspirante a monarca”, a mesma acusação feita contra Tibério Graco 90 anos antes, a qual o historiador Ronald Syme chama de simplificação construída para opor a figura de César a outros, como Pompeu e César Augusto, não devendo ser tomada como uma representação real de César ou como o verdadeiro motivo por trás de sua morte. O cientista político Michael Parenti analisa o assassinato de César não apenas como um ataque único, mas como um numa linha de eventos semelhantes, mesmo que de menor magnitude, em um grande projeto oligárquico contra reformistas. A maioria dos historiadores desde Cícero no entanto toma uma posição de admiração em relação ao sistema aristocrático da República e lamenta a queda das antigas instituições, acusando César de ser um demagogo que defendia legislações populares por interesses pessoais, mesmo sabendo que sempre corria o risco de ser assassinado como seus predecessores, e um autocrata sem respeito pelo sistema republicano, especialmente pelo seu hábito de apresentar propostas diretamente para as assembleias populares ao invés dos oligarcas no Senado, um terrível e intolerável ato de tirania, enquanto seus assassinos se apresentaram como defensores da liberdade e da ordem tradicional. Ronald Syme comenta sobre os pretextos dos assassinos:

“Bruto e seus aliados podem evocar filosofia ou um ancestral que liberou Roma dos Tarquinii, foi o primeiro cônsul da República e fundador de libertas. História duvidosa, e irrelevante. Os Liberadores sabiam de seus motivos. Homens honrados tomaram a adaga do assassino para matar um aristocrata romano, um amigo e um benfeitor, por razões melhores que essas. Eles representavam não meramente as tradições e instituições do Estado Livre, mas precisamente pela dignidade e interesses da sua própria ordem. Liberdade e leis são palavras de bom som. Elas são frequentemente manifestadas como privilégios e interesses.”

Não devemos ver o conflito do declínio da República como um drama pessoal, como fizeram muitos historiadores, a exemplo de Cássio Dio. Essa visão de eventos históricos como consequências apenas de egos e vontades de grandes indivíduos deve ser reservada aos romances e novelas. Os nomes dos heróis e vilões, dos trabalhadores e lideres das comunidades locais, foram em sua maioria perdidos, nos restando apenas as histórias dos representantes de suas causas nas instituições do governo. A importância de defender e exaltar os nomes dos Gracchi e de César não está em defender a honra pessoal de indivíduos, mas sim sua contribuição para a humanidade através da revolução que eles personificaram. A personalização dos conflitos políticos é algo que é frequente no discurso anti-populista e em discussões políticas vulgares como um truque de retórica, afinal é mais fácil obter sucesso em atacar a moral particular dos homens do que a nobreza e validade de suas causas, sejam as acusações verdadeiras ou não.

Das lições da história aos populistas modernos

Após esse curto resumo sobre a tradição populista da República tardia, podemos comparar práticas dos Populares e as acusações disparadas contra eles a políticos considerados populistas no último século. “Demagogo” era um termo comumente usado contra os Gracchi e César, ao ponto que muitos tratam demagogia e populismo como sinônimos ou termos intimamente relacionados, ambos sendo usados para se referir ao discurso político motivado por interesses pessoais e travestido de popular; irônico, considerando esses líderes populistas conscientemente colocavam a vida em risco ao defender suas posições reformistas, algo que todos que seguiram Tibério sabiam, e ainda assim eles as defendiam, e a maioria deles acabou como Tibério, Gaio e César, um comportamento muito arriscado para indivíduos supostamente sem motivação nenhuma além de ambição pessoal, que poderiam mais facilmente ter se rendido a velha ordem aristocrática, vivido luxuosamente e morrido velhos e gordos em suas villae sendo servidos por centenas de escravos, ignorando os choros das massas sem emprego, moradia e comida nas ruas de Roma. Milênios depois, ainda jogam as mesmas acusações contra as gerações modernas de populistas. O governador de Louisiana e senador americano Huey Long foi taxado de populista, demagogo e autoritário, e ele também acabou assassinado, morrendo no hospital horas depois de levar um tiro no peito, mas sem antes de pedir que Deus não o deixasse ir tão cedo, ainda deixando tanto à fazer. Getúlio Vargas, um dos maiores representantes do populismo latino-americano, o mais brutal ditador do Brasil, o homem que passou mais tempo no poder durante a República, se suicidou, vitimado por uma massiva campanha de calúnia orquestrada como uma resposta a sua defesa da soberania nacional por uma classe ressentida pelo aumento do salário mínimo durante seu governo. Quando Leonel Brizola e Darcy Ribeiro abriram os primeiros Centros Integrados de Educação Pública no Rio de Janeiro na década de 80, críticos rapidamente acusaram as CIEPs de serem “medidas populistas”, seja lá o que isso deveria significar.

Curiosamente, desde o tempo dos Gracchi, as classes dominantes determinadas em defender as instituições não parecem ter problemas em essas mesmas instituições nos primeiros sinais de mobilização popular organizada determinada em conduzir mudanças, recorrendo ao assassinato, ao golpismo e aos mais baixos jogos políticos, apenas para preservar o que puderem dos próprios privilégios materiais, e são essas classes que, há mais de 2000 anos, se organizam ferozmente contra qualquer indicação de populismo, os feitos de César sempre frescos nas suas memórias ainda hoje, mas a cada dia mais esquecidos por aspirantes a populistas contemporâneos, que agressivamente rejeitam a nomenclatura e as práticas associadas ao populismo histórico, aceitando calados a narrativa das classes dominantes, sem notar que ao fazê-lo sabotam seus próprios objetivos e traem a seus precursores ideológicos, cedendo o campo político aos descendentes dos antigos optimates, que trocaram a força bruta pelo monopólio midiático como método favorito de forçar as massas a se conformarem ao status quo, mas que nunca abdicarão da violência política, e também não hesitarão em acusar de agressores aqueles que, sabendo da história, tomam as medidas necessárias para proteger suas próprias vidas e sua causa.Já passou o tempo de rejeitar o discurso hegemônico das classes dominantes e parar de se envergonhar da alcunha de populista. Os partidos das causas do povo não devem procurar se afastar de um termo tão apropriado por deixar de disputar a hegemonia do discurso político, tão importante para os debates formais no parlamento e os casuais entre familiares, devem procurar estabelecer uma novo discurso hegemônico, um que tome como foco principal o povo e suas condições materiais e espirituais, em oposição ao discurso aristocrático excessivamente moderado e tímido à evolução da sociedade, isto é, uma hegemonia populista.

Como vemos nos exemplos dados pela história, a classe dominante não hesitará em caluniar toda manifestação de tal sentimento, e por isso que tornaram populismo em insulto, mas é um insulto vazio, pois o termo carece de qualquer acusação real ou ataque contra a honra, salvo pelo ataque criado pela própria aceitação desta errada definição (ou a sua falta), definição esta que deve ser disputada, pois a disputa dos termos usados no discurso deve ser o primeiro passo para a disputa política maior, afinal não pode um grupo político disputar se aceita, sem reclamar, jogar em um tabuleiro montado contra ele, e daí tentar mudar a si ao invés do tabuleiro, abdicando de seus princípios para se adequar as regras de cortesia estabelecidas por seus opositores. Não é possível construir sobre uma base inapropriada, deve-se primeiro atacar e reformular essa base; da mesma forma não se deve aceitar a hegemonia teórica da oposição sem debater e, ainda assim, esperar construir um projeto fundamentalmente antitético à ideologia hegemônica.

Enxergando populismo como uma certa espécie de discurso, não devemos assumir que qualquer manifestação populista será legitimamente popular ou útil aos reais interesses do povo, todas essas coisas são diferentes e não devem ser confundidas. Todos devem se atentar ao discurso que centra o povo mais beneficia poucos, ou que é usado como disfarce para atacar algum grupo, como já aconteceu tantas vezes na história. Cada situação política é única e é difícil, se não impossível, fazer uma afirmação geral completamente aplicável, mas dos conceitos sobre populismo que vimos podemos tentar induzir certas coisas. Primeiramente, o discurso populista põe o povo como o principal agente político, em oposição a uma classe dominante que fala em grandes homens que movem a sociedade em função de sua glória individual, daí vemos que o populismo entende os homens como representantes das causas e preocupações do povo, e não o povo como reprodutor das vontades de senhores, e vemos também que a uma oposição ideológica e espiritual fundamental entre a classe dominada e a dominante, além da oposição das condições materiais, mais imediatamente visível. Atentemos pode um sofista preparado usar o discurso populista em favor de suas próprias individuais, seja para beneficiar a classe dominante ou mesmo a um indivíduo específico que procure se aproveitar dos corações do povo. Este último caso não deve ser confundido com o surgimento de líderes populares, que, consistentemente a sua orientação política radical, tendem a ter personalidades mais inflamadas, diferentes das inclinações mais calmas dos moderados, afinal um movimento disruptivo e questionador tenderá a criar ou atrair mentes iguais, e o mesmo ocorre a um movimento cauteloso e moderado.

O que diferenciará um líder legitimo de um aproveitador pode estar em detalhes, talvez a oportunidade de revelação surja em poucos momentos, mas da história podemos notar algo: os grandes líderes populistas morreram ou sofreram por sua oposição a classe dominante, e toda vez que surgia outro líder ele sabia do exemplo de seu antecessor, e ainda assim decidia dedicar a vida a causa, o que não é dizer que completamente abdicaram de toda paixão pessoal, mas que preferiam assumir o risco à própria vida ao conforto da defesa da aristocracia, da qual muitos desses líderes faziam parte por nascença. Para exemplos relativamente recentes, temos Henri de Rouvroy, que abdicou de seu título de nobreza, e Getúlio Vargas, que se entregou ao martírio durante uma crise que se levantou contra ele não como pessoa, mas como representante da causa trabalhista. Nenhum desses líderes deve ser visto como uma grande figura heroica, removida da realidade, e sim como figuras que surgem da simpatia as causas corretas, que pode aflorar em todas as classes, e ao fato que é mais fácil que um líder político surja da classe dominante pela sua concentração da educação formal e culta e tradição política. Lideranças políticas de diversas orientações tendem a surgir na classe dominante, pois ela é a classe que mantém o monopólio dos meios políticos formais, sendo consideravelmente mais difícil, embora certamente não impossível, que lideranças populares entrem na política formal sem que sacrifiquem muitos princípios ou tenham uma oportunidade causada pela instabilidade institucional que pode enfraquecer o monopólio político da classe dominante.

Quanto a manipulação do discurso populista para fins odiosos, deve-se apontar que não há projeto político real quando tudo que se propõe e reação e rancor. A causa da defesa de uma classe não deve ser pela destruição de seus inimigos pela exterminação, mas pela política, e sua base não deve ser o ódio e vingança, mas a solidariedade. Isso não é dizer que nunca existirá ódio e violência, essas são simplesmente realidades da política, e não é razoável esperar que um povo vilipendiado sinta compaixão pelo seu agressor. Primeiro devemos deixar claro que a reação de um escravo que, cansado de ser chibatado, assassina seu torturador, é violência, mas não agressão, agressão foi o ato da escravidão. Se daí este homem, que se fez livre, decide continuar assassinando escravagistas, ainda não agride, pois não foi ele que começou uma violência sem provocação, mas a usa para realizar defesa de terceiros, como usou para a própria defesa, e o faz tanto por ódio à escravidão e solidariedade ao seu semelhante, sendo o primeiro uma consequência natural, não só das experiências do nosso homem hipotético, mas do segundo. A vingança é, por essência, uma reação, e não é viável a construção de um projeto sólido se a sua base só existe em função de uma outra coisa. Ademais, ela é inútil, pois só pode vir após o fato da agressão e só para satisfazer um desejo, pois se impedisse a agressão não seria vingança, mas autodefesa. Ao falar em solidariedade, isso não deve ser entendido como subserviência e abdicação da violência, mas como o sentimento de conexão e disposição a ajuda e a defesa de seu semelhante, o que pode incluir a violência justificada como meio de proteger a si e a seu próximo de violência injustificada, isto é, agressão. Violência, portanto, se justifica como meio de impedir ou cessar violência, isto é, como autodefesa, seja ela autodefesa de indivíduos ou de uma classe vitimada, mas não deve ser tomada como base, pois não pode-se erguer algo sustentando naquilo que existe apenas em função de outro, mas principalmente porquê a violência por ela própria, não legitimada segundo o príncipio do combate a violência, é antitêtica ao amor, a real base que sustenta a civilização e o progresso, como ensinado por Comte.

Em suma, vendo as lições da história, entendemos porquê os movimentos que se organizam em volta do povo devem assumir a sua verdadeira natureza, ao invés de tentar se afastar dela para se adequar às regras feitas contra eles, pois isto é erguer uma casa na areia; é se jogar do bote para tentar nadar contra a corrente. Esses movimentos o fazem, possivelmente pela esperança de se apresentarem como moderados racionais para atrair simpatia ou por estarem fundamentalmente doutrinados pela lógica hegemônica, mas a história mostra como as classes dominantes irão se organizar para a difamação dos movimentos populares, e como se contradizem em sua suposta defesa das instituições as quais eles simultaneamente sugam e destroem, estando bem disposto a fazer isso mesmo com homens reconhecidos como nobres e bons, como Cipião e os Gracchi, pois a seus olhos esses não eram apenas homens e colegas políticos, mas representantes de uma ideia nociva, a ideia de soberania popular. Estabelecemos também alguns pontos sobre os movimentos populares e as lideranças populistas. Com essas ideias gerais, procuramos disputar o discurso hegemônico a redor da ideia de populismo e definir claramente um termo tão nebuloso ao mesmo tempo que comum.

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